sábado, 9 de abril de 2022

VERSÃO BRASILEIRA DE OS VENTOS AO SUL

Uma viagem ao passado é quase sempre uma aventura carregada de místicos elementos que abalam os nossos sentidos e sensibilidades. Quando o condutor do trailer é excelente, os detalhes não passam despercebidos, inclusive os cheiros nos arrebatam e nos enobrecem, pela peculiaridade com que somos brindados no rigor da construção das personagens e cenários. É assim no romance histórico. É assim em “Os Ventos ao Sul”, de Fragata de Morais. António Quino Na pratica, a crítica literária incorpora-se na instituição literatura como praxe mediadora, que assume o (in)grato papel de dissecar o que o sistema de leitores não faz por falta de conhecimentos ou de domínio sistémico dos meios. O crítico vai, assim, limitar-se a mostrar um possível caminho de leitura interpretativa, metodizando conceitos para melhor se observar a obra como uma estrutura homogénea composta por um conjunto (“corpus”) de textos. Não sendo sua função validar ou autenticar qualidade, a crítica literária ajuda a melhor olhar a identidade do texto como um objecto literário, tornando evidente a relação entre a lua e o sol da obra, nomeadamente a pragmática (multiplicidade de sombras) e a emblemática (a luz que permite observar e a conservar a identidade). A escola tradicional também indica o caminho de múltiplos olhares para o texto literário com as lupas que permitem, ao leitor (aluno), aprender a identificar géneros, categorias, subgéneros ou talvez transgéneros. Nesse contemplar crítico que a escola tradicional nos doa, as características ou categorias flexíveis assumem-se como cartões de identidade devido aos traços estruturais, semânticos, sintácticos, fonológicos, formais, contextuais e outros. São apenas caminhos de múltiplos olhares. Através de um desses olhares, pode-se distinguir a natureza literária do objecto literário, designando assim critérios de distinção baseados em certas normas. É possível, com base nisso, não se confundir texto literário com qualquer um outro texto na acepção universalista do termo. E se entendermos literatura enquanto arte, seria pleonástico reafirmar que nem toda obra imprensa é literatura, assim como nem todo o autor é escritor. NO CORPUS DOS VENTOS AO SUL Já o dissemos acima: o plano crítico e a escola tradicional reconhecem que há dissemelhanças entre géneros, categorias, subgéneros ou talvez transgéneros, diferenças marcadas por traços estruturais, semânticos, sintácticos, fonológicos, formais, contextuais e outros. Ora, o género literário é uma categoria de composição literária. Conforme a divisão clássica de filósofos da Grécia antiga, como Platão e Aristóteles, desde a Antiguidade, os géneros literários agrupam-se em três: narrativo ou épico, lírico e dramático. Esses três pilares primários abrangem inúmeras classes aparentemente menores, comumente denominadas subgéneros. E é assim que passaremos a classificar, nesse ensaio, o romance histórico; subgénero, em cujo relvado jogará a obra “Os ventos ao sul”, de Fragata de Morais. “OS VENTOS AO SUL”, que narra peripécias centralizadas nos Seculos XIX e XX, é um romance estruturado em quatro tomos, designadamente “O arrebatado”, “O degredado”, “O aventureiro” e, finalmente, “Os seguidores”. Como o próprio Fragata de Morais apresenta, a obra retrata “A saga de uma família que tem sua origem no Porto [Portugal] em 1813 e cujo protagonista enfrenta o poder sendo deportado pela coroa portuguesa para Luanda a fim de cumprir uma pena de degredo de cinco anos”. Nessa narrativa histórica, ficcional e discursiva, a maior odisseia do personagem “precursor” inicia, após o cumprimento da pena, em terras dos povos Ambó. Diria que o referido romance preencheria bem um plano de aula, cuja narrativa se gruda e cabe na armadura de um romance histórico. E é nessa via terciária que conduzirei o meu texto. IDENTIDADES DO SUBGÉNERO As teorias ensinam-nos que o romance histórico é marcado por três destacáveis faces. 1. Num primeiro aspecto, defende-se que o facto histórico deve ser o ponto de partida para a construção do facto literário. Ou seja, a ficção deve representar e apresentar o passado histórico com qualidade “fotográfica”. Assim, a dado passo da narrativa, a história solicita a aferição do leitor sobre determinados elementos da própria narrativa. 2. Num segundo marco, o autor busca legitimar os factos históricos através de documentos e referências históricas. Por trás disso há a comunicação com o descrito no primeiro aspecto. Ou seja, a ficção encontra uma comoda almofada na história. Com base no texto, as referências históricas de monumentos como a Fortaleza de S. Miguel descrita na obra permitem criar uma maior fiabilidade do facto literário. É a almofada que a ficção colhe da história. 3. Num terceiro momento, realça-se no romance histórico o caso de haver uma relação intrínseca entre os valores éticos e os morais, tanto nas personagens como nos temas. Este aspecto é justificado pela necessidade quase patológica do romancista em afrontar a herança colonial, algo que abordaremos mais adiante. A obra que temos estado a analisar é rica nesse aspecto. O narrador questiona a qualidade da justiça da natureza, bem como a qualidade da moralidade da comunidade (humana), que não poucas vezes actua cega apenas porque pretende respeitar uma certa tradição dos homens. Se nos dois postulados estamos em presença de alguma estabilidade e harmónica relação, nesse terceiro já observamos conflito, pois a narrativa no romance histórico incide sobre o discurso do oprimido contra o do opressor. A afirmação de uma identidade pressupõe a negação de outra. Assim é com as nações nascidas de conflitos identitários entre colonizadores e colonizados, como fica espelhado no livro. O eterno conflito entre o subjugado e o subjugador, mais uma vez, é descrito como um elemento desagregador cultural, legitimando o marco centrista que privilegia a identidade do colonizador em detrimento do colonizado; do oprimido que se vê subalternizado na sua essência. Tal como verificamos em Fragata de Morais, também é notório entre outros romancistas a permanente necessidade de enfrentar a herança colonial, procurando deixar isso patente nos eventos que são expostos ao longo da narrativa. A derrota do opressor é celebrada. Mergulhando no texto, por o romance histórico ser um subgénero literário, geralmente em prosa, em que a narrativa ficcional se aclimata no passado, o autor procura levar o leitor a apalpar o passado, conforme defendem Ian Mortimer e Walter Scott. Fragata de Morais traz-nos um bom exemplo, reportando marcas de um século em que os transportes ainda funcionavam sob tracção animal, e o uso da força terrestre a cavalo como arma de acções de choque ou reconhecimento ofensivo pelo combate contra insurgentes. O autor aclimata o leitor e projecta-o para um tempo do outro tempo, com a descrição de alguma actividade de rebeldia contra o poder instituído. O escritor, ao embrenhar-se no romance histórico, penetra no campo da articulação entre os aspectos ficcionais da literatura e os factos históricos, destacando nele a capacidade da narrativa representar, com qualidade, o passado, bem como o retrato de guerreiros envolvidos em batalhas heroicas no enredo. O romance histórico é prenhe na construção de heróis entre os oficialmente rebeldes. Aquele que as autoridades coloniais descrevem como sublevado, o romancista transforma-o em protagonista, com bravura e humanidade. Personagem fácil de ser prezada pelo leitor. É, por isso, frequente observarmos na narrativa uma defesa da identidade cultural própria dos países, e os seus movimentos revolucionários ou de revolta, construindo-se heróis. O romance histórico foi, e ainda é, muito utilizado para sustentar a ideia de independência de povos subjugados por regimes coloniais. Pode-se ainda afirmar que, nas suas identidades contemporâneas, o romance histórico também se caracteriza por relativizar, de forma crítica, os factos ficcionais com a história oficial, pois traz nas narrativas várias vozes contestatárias incarnadas nos personagens. ELEMENTOS DA NARRATIVA Para o romance histórico, a narração é uma exposição organizada de acontecimentos reais ou imaginários. Porque construir um texto narrativo não é só relatar um acontecimento, o autor assume a preocupação de criar um cenário espacial, cultural e social favorável à construção narrativa de nação, privilegiando as relações entre o conteúdo e os contextos históricos, a tal relação entre o facto histórico e o facto literário. Também, quando procuramos destacar a identidade, ou identidades, do romance histórico, a chamada autenticidade de cor local deve ser preservada, por aglutinar a informação histórica e o passado como um todo estruturante, espelhando uma realidade acabada. Por aqui, a quantidade e a qualidade de pesquisa do romancista ajuda a definir a qualidade de cor local. É importante que o escritor tenha o conhecimento histórico para o retratar. Aliás, como nos lembra Umberto Eco, é preciso construir o mundo que o romance histórico retrata. Com “Os ventos ao sul”, Fragata de Morais recria cheiros através da descrição de cenários, conduzindo o leitor a reviver o momento histórico da narrativa. Na prossecução entre os factos históricos e literários, Fragata de Morais edifica relações de personagens que aproximam o ficcionado do mundo real, trazendo vivências e contextos dominados por realidades documentalmente comprovadas, ou não, com figuras imaginárias, coabitando com outras reais, que preenchem o espaço da narrativa. No sul do romancista angolano há mesmo um sul de povos que resistiram heroicamente à dominação colonial portuguesa. Há, portanto, uma tentativa platónica do romancista contar uma pretensa verdade. É assim que a composição do foco narrativo, dos personagens, do enredo, do tempo e do espaço geográfico é feita de modo que haja concordância com os dados históricos. O escritor, moldando o objecto literário, não perde de vista a forma como o espaço físico é representado no romance histórico. A exposição e representação do relevo ou outros marcos da flora configuram simbolicamente fronteiras territoriais de povos. Árvores, montanhas, chanas, pradarias ou rios são uma característica marcante na descrição do romance histórico, como marco natural da resgatada soberania territorial. Esses mesmos elementos naturais são representações figurativas de divisões entre diferentes grupos políticos e sociais. É por isso compreensível que essas fronteiras naturais marcam divisões territoriais e divisões ideológicas, políticas e até mesmo antropológicas. Ainda sobre os elementos da narrativa que dialogam com o passado, os personagens de Fragata experienciam os movimentos e as mudanças históricas, mas nunca tendo um papel directo nelas, inseridos em um contexto que é maior do que aquilo que compreendem. A história acontece sobre a agenda do autor, que se aproveita da atmosfera para estabelecer padrões de virtudes nacionalistas contra o opressor. FINALMENTE… Em “Os ventos ao sul”, Fragata de Morais apresenta-nos uma narração histórica assinalada por peripécias de povos nos Séculos XIX e XX, iniciado por um destemido jovem português, deportado pela coroa portuguesa para Luanda, que acabou por escrever com letras doiradas o seu nome na luta de resistência à ocupação colonial. A obra é uma venturosa viagem ao passado, que proporcionará aos seus leitores um enriquecimento antropológico dos povos que no sul de Angola se bateram heroicamente contra a ocupação estrangeira. Vale a pena embarcar nessa viagem. António Quino Membro Fundador da Academia Angolana de Letras

quinta-feira, 1 de julho de 2021

CONTOS DE SAMUEL ASTRO


O MERETÍSSIMO JUÍZ

Numa sexta-feira 06 de Junho de 1969, o Meritíssimo Doutor Juiz Pran Gupta, português de origem goesa e há uma década, pelo menos, residente luandense, proveniente de Lourenço Marques de onde saíra por comportamentos profissionais não muito ortodoxos, conseguiu alcandorar-se à ribalta local quando julgou e passou sentença num caso que, pela sua peculiaridade, o tornou afamado. Talvez hoje, para dias de notícias instantâneas nas redes sociais, falsas ou verdadeiras, poderá parecer o caso inócuo ou até o pão-nosso-de-cada-dia, logo descartado com um “e depois?” de surpresa, se não de chacota.

Luanda era então um pequeno burgo, não obstante dar-se ares de menina vaidosa e autointitulada de pérola de qualquer coisa, onde se vivia sem grandes sobressaltos a não ser que se estivesse envolvido na política nacionalista. Para a notoriedade do caso de igual modo concorreu a postura da Igreja Católicas, feroz perseguidora de acções ou actos que pudessem ser considerados não rigorosos em termos de valores sociais e ou religiosos e por, de igual modo, ser o iminente jurisprudente um conhecido ateu, nem reverenciando qualquer um dos milhões de Deuses da sua nativa Índia.

Certamente que o Juiz foi involuntariamente ajudado por um outro acontecimento insólito, o primeiro desvio de um avião por nacionalistas angolanos, para Brazzaville, dois dias antes e conforme constou no comunicado da PIDE do dia 4 de Junho.

“No dia 4/6/69, pelas 15.30, o avião C-3 matrícula CR-LCY, da DTA, da carreira Luanda /Sazaire, com 5 tripulantes e 12 passageiros a bordo, foi obrigada a mudar rumo para Ponta Negra pelos seguintes criminosos armados: -LUÍS ANTÓNIO NETO, o “Loló”, solteiro, estudante, nascido a 4/11/47, natural de Luanda, filho de Alberto António Neto e de Josefa Luís António Neto e residente em Luanda. –

DIOGO FERNANDES JACINTO LOURENÇO DE JESUS, solteiro, funcionário do Laboratório de Engenharia de Angola, nascido a 2/11/941, natural de Luanda, filho de Jorge Jacinto de Jesus e de Ana Lourenço de Jesus e residente em Luanda. –

MANUEL CAETANO SOARES DA SILVA, solteiro, funcionário da Imprensa Nacional de Angola, filho de Luís Gomes Soares da Silva e de Isabel Luciana Soares da Silva e residente em Luanda.

O assalto teve início a meio do percurso Ambrizete/Sazaire, quando Manuel Caetano Soares da Silva entrou bruscamente na cabine de pistola em punho e intimou a tripulação a seguir para Brazzaville. Ao mesmo tempo, o Luís António Neto, de frente para os passageiros, ostentava uma GMO fazendo menção de lhe tirar a clavilha de segurança. Nesta altura, porém o passageiro Mário Carneiro envolveu-se em luta para lhe tirar a granada, sendo auxiliado pelo radiografista Luís Torres e Arménio da Mata, 1º subchefe da PSP. Entretanto o assaltante Diogo Fernandes Jacinto Lourenço de Jesus, que se encontrava na retaguarda dos passageiros, ordenou a Luís António Neto, o “Loló”, para lançar a granada, sublinhando a ordem com dois tiros de pistola que perfuraram o tecto do avião”.

Com toda esta comoção que a polícia política portuguesa não conseguiu evitar e esconder, a sentença do Juiz Pran Gupta até deveria ter passado despercebida não fossem os católicos e demais denominações protestantes com sede em Luanda, terem-se sentido indignados e disso terem feiro bandeira de luta.

O homem foi destratado de toda a maneira e feitio, no fundo não era português de primeira para além de a sua terra ter sido usurpada sem apelo nem agravo, segundo Portugal, pela Índia em Dezembro de 1961.

Como poderia um monhé ateu defender os interesses da Santa Madre Igreja Católica Romana Apostólica, os bons costumes e hábitos das populações ditas civilizadas?

Não fosse a tensa situação política, talvez até o tivessem destituído e mandado par Portugal a fim de ser mantido sob um olho pidesco muito mais próximo e efectivo.

Mas quem foi o causador ou, melhor, a origem do imbróglio em que o nobre Juiz se metera? Pelo que já se poderá ter depreendido, teria que ser um outro cidadão de segunda classe, neste preciso caso de terceira por ser negro, Estéfano Tuluka, rico comerciante de café a habitar em Luanda.

Tuluka herdara, em 1950, com vinte e cinco anos, vastas terras da família a que os portugueses ainda não haviam metido mão, sabe lá Deus porquê. Ciente de que o café valia mito dinheiro, conseguiu umas mudas, mandou roubar outras tantas e assim deu início a um negócio que lhe veio a ser de prosperidade e abastança. Com o advento da luta armada, sentiu-se mais protegido, havia que começar a tratar os negros melhor, sobretudo aqueles que representavam algum peso económico para a Província. Foram-lhe facilitados créditos e alargou a produção pelo resto do terreno ainda improdutivo e que viria a transformar-se numa bela fazenda. Em 1969, Estéfano Tuluka era um nome reconhecido como produtor de café, não obstante a descriminação natural dos colonos menos abastados e de grande parte da população branca. Conseguiu construir uma casa enorme nos arredores ainda musseque da Vila Alice e em relativamente pouco tempo outras seis. Não satisfeito, começou a comprar os terrenos à volta e anos poucos depois aquela área passou a ser conhecida como o Musseque Tuluka até ao advento da Independência.

Pela força do poder económico conseguiu dar uma boa escolaridade aos filhos, três licenciarem-se em agronomia e as duas filhas acabaram por esposar roceiros brancos endinheirados do interior, o que o levou a sentir-se muito honrado pelas mesmas terem conseguido melhorar a raça com a vasta prole que mais tarde se seguiu.

Em 1966, não esquecendo as origens e cultura que lhe eram intrínsecas, Estéfano Tuluka contratou o mais afamado quilamba de Luanda, José Ilídio, mais conhecido por Ngola Yetu, junto ao qual quase todos os chefes de posto locais e das redondezas se iam lavar frequentemente e fechar qualquer possível buraco deixado inadvertidamente aberto pelo qual o inimigo pudesse entrar e fazer estragos. Branco é branco, mas branco em África é branco em África e os administradores colonias bem o sabiam, não fosse o diabo tecê-las.

Ngola Yetu tinha por tarefa principal velar pelos sucesso permanente dos seus empreendimentos numa Angola em franco desenvolvimento, e pelo bem-estar da família, mantendo tudo permanentemente purificado.

Terá sido em 1968, numa altura em que se verificou uma estiagem mais ou menos prolongada, quando baixou sobre grande parte das suas terras, sobretudo nas áreas mais ensolaradas, um flagelo conhecido como a praga do Ácaro vermelho o que reduziu os índices de produção e por consequência o das vendas, por ele não ter tratado a tempo uma desgraça que até nem era dos mais perigosas para os cafeeiros.

De imediato Ngola Yetu foi chamado e indagado de como não previra o flagelo e tomara as devidas e cabíveis medidas para que o facto não se tivesse produzido, sobretudo quando era pago que nem realeza. Afinal que quilamba era se não controlava o imprevisível, conforme sua fama fazia jus e que ele garantira de infalível?

Recebera mais de dois anos de salários volumosos para a época, sem falar nas bicicletas para ele e familiares, nas capoeiras de vime cheias de galinhas, galos, patos e cabritos sem fim, nas hortícolas e frutos. Regularmente levava-o às terras cafeícolas onde o mestre conduzia várias minuciosas e elaboradas cerimónias purificadoras que deveras impressionavam Estéfano Tuluka.

Não aceitava deste modo, a falibilidade do seu protector pessoal que, fosse nos tempos de hoje, certamente teria canudo passado por uma qualquer universidade americana nessas ciências. Decidiu apresentar queixa em tribunal e se bem o pensou, melhor o fez.

Quando se soube em Luanda qual o teor da acusação, o caso virou chacota e assunto de conversa generalizada, não muito abonatória a um abastado fazendeiro, supostamente crente e praticante da Santa Madre Igreja Católica Romana e Apostólica.

Estéfano Tuluka apresentara a referida acusação com base em fraude por promessas não cumpridas e por abuso de confiança. Segundo o seu advogado de há muito e que sempre o desaconselhara de se envolver em quimbandices e crenças similares para protecção de seus bens e família, achava que, não obstante o insólito da situação, poderia ter uma boa chance de ganhar pois efectivamente havia um contrato, verbal, todavia contrato, para prestação de serviços especificados entre ele e o mestre José Ilídio, vulgo Ngola Yetu, sobretudo pela parte contratante ter cumprido religiosamente com o que prometera, muitas vezes ultrapassado até.

Quis o destino, ou talvez não, que o Juiz que presidiria o julgamento fosse o ainda não famoso Pran Gupta.

Com a sala do julgamento apinhada de gente de todas as proveniências sociais, jornalistas de máquinas fotográficas na mão, e metade do Marçal em peso. Afinal a origem do Musseque Tuluka tinha aí as suas fronteiras originais.

A sessão teve que ser adiada por duas vezes pois mais parecia um arraial ou uma feira popular do que um julgamento e o Meritíssimo Juiz decidiu que só poderiam estar presentes vinte pessoas, sorteadas à porta, durante os dias que o julgamento durasse e devidamente identificadas por listas de modo a que a mesma pessoa não pudesse atender à sessão por duas vezes. Isso não obstou a que se mantivesse uma larga chusma de povo nas redondezas do tribunal, ávido de saber em primeira mão como as sessões teriam sido conduzidas.

Nunca um quilamba fora levado às barras do tribunal por incumprimento profissional. A profissão corria risco, a não ser que o advogado de defesa conseguisse demonstrar que ser quilamba não era só profissão, mas sim e também uma manifestação religiosa, filosófica até, com base em premonições provenientes dos antepassados e do uso de diversas artes e estratagemas para sua concretização, tudo conforme os hábitos e costumes locais e o direito consuetudinário. Transformar, se pudesse, Ngola Yetu num tipo de sacerdote a quem a providência divina falhara de modo natural, não por dolo.

Nas páginas centrais dos jornais, certamente pago pelas diversas Igrejas em Luanda, começaram a aparecer com regularidade citações bíblicas enquanto decorreu o julgamento, que durou três dias.

"Não recorram aos médiuns nem bus­quem a quem consulta espíritos, pois vocês serão contamina­dos por eles. Eu sou o Senhor, o vosso Deus.  Levítico 19:31, lia-se no Correio da Matinal, do dia 06 de Junho de 1969.

O Jornal de Luanda, que saía ao fim da tarde, na edição do dia seguinte, alertou os cidadãos parafraseando o escriba bíblico que anotara as sábias palavras, em Levítico 20:6: "Voltarei o meu rosto contra quem consulta espíritos e contra quem procura médiuns para segui-los, prostituindo-se com eles. Eu o eliminarei do meio do seu povo”.

No dia final do julgamento que tornou famoso o Meritíssimo Juiz Pran Gupta, mais tarde recambiado para São Tomé e Príncipe para meditar sobre seus ditames jurídicos em Ilha verdadeiramente paradisíaca, o mesmo Correio Matinal, não se sabe se como ameaça e intimidação, retirou das páginas centrais a citação bíblica e escarrapachou-a na página principal, em letras garrafais.


“Saul morreu dessa forma porque foi infiel ao Senhor, não foi obediente à palavra do Senhor e chegou a consultar uma médium em busca de orientação.
1 Crónicas 10:13.”

Não se sabe se terá passado pelas mãos do Meritíssimo Juiz tal jornal ou não, e se passou, não teve influência alguma sobre sua douta sentença que se baseava, palavra mais palavra menos, no facto de considerar que o queixoso Estéfano Tuluka não fora defraudado na sua boa-fé e confiança na fama do mestre Ngola Yetu, como igualmente, e ipso facto, não ter tomado as medidas precautórias para conter a praga, até fácil de ser combatida se detectada a tempo, atirando para cima do mestre José Ilídio, que nada sabia de café e agronomia, as culpas e recusar pagar o que lhe era devido.

O advogado do mestre quilamba pleiteou, e bem, que os serviços para a limpeza espiritual dos bens e família do fazendeiro Estéfano Tuluka sempre haviam sido honradas segundo os preceitos usados há largas décadas pelo mestre, herdados de pai para filho há quatro gerações. Em conformidade, apelava ao Meritíssimo Doutor Juiz que o réu fosse mandado em liberdade e ressarcido com valor monetário substancial pelas perdas causadas no que refere ao seu bom nome profissional e místico, aos danos morais envolvidos e aos gastos a que foi obrigado a incorrer e que bastante o endividara.

Logo se ouviu um burburinho mais ou menos generalizado e várias sonoras gargalhadas largadas pelos padres Martins e Gerónimo, ao fundo da sala.

O Meritíssimo Juiz Pran Gupta deixou que a tempestade amainasse, ao fim da qual admoestou a audiência, prometendo que evacuaria a sala caso se repetisse.

Após a acusação e a defesa terem esgrimido todos os argumentos, Pran Gupta fez as considerações finais, numa linguagem certamente considerada herética pelos padres presentes, e não só, e o tribunal não veio abaixo quando ditou a sentença for ter sido erguido em estrutura antiga e sólida, nas bases da dilatação da fé e do cristianismo.

Os três polícias presentes, que abandonaram os postos para ouvir a sentença, tiveram que intervir para conter os ânimos da maioria dos presentes, quando o Juiz Pran Gupta mandou o reu ir em paz pois não ficara provado que o expurgo espiritual dos bens e da família do acusador Estéfano Tuluka não fora levado a cabo com o denodo habitual, sobretudo quando o mestre Ngola Yetu lhe prestava serviços há muito. Era, pois, obrigado a indemnizá-lo na quantia de quinze mil escudos e a obrigar-se ao pagamento dos custos totais das despesas do acusado.

Face à repercussão do caso, Estéfano Tuluka foi aconselhado pelo seu advogado a não recorre e deixar o assunto como estava, certamente que mais cedo ou mais tarde a administração colonial e a igreja haveriam de cuidar desse juiz monhé herético, segundo suas palavras.

Foi em 1989 que vim a conhecer um filho de Ngola Yetu, o mestre Serafim José, já igualmente com fama no Marçal e arredores luandenses, e que me relatou toda esta estória quando um vice-ministro amigo que acabara de ser nomeado me solicitou que o acompanhasse, na minha viatura, a uma sessão de lavagem e fechamento espiritual por não desejar entrar sozinho naquele bairro onde poderia ser reconhecido.

sábado, 15 de agosto de 2020



Excerto:
Ainda estava de cócoras, por trás de uma árvore, quando desabou sobre o acampamento um alvoroço de vozes, gritos e tiros, num claro salve-se quem puder. Puxou rapidamente as calças para cima e correu para trás de um morro de salalé entre duas árvores, tentando observar o que se passava, agachado. Viu gente vestida de panos curtos, muitas azagaias, punhais, porrinhos e algumas, poucas, armas. Três dos carregadores jaziam no solo, mortos certamente, notou que nenhum deles era Kandjimbu e o resto conseguira fugir. Os burros zurravam assutados, alguns aos pinotes sacudindo a carga que já fora parcialmente colocada sobre eles, alguma já trafegando de mão em mão entre gritos de alegria. Manteve-se estático, ninguém se preocupava em saber dele, pelo menos assim julgava, e sempre seria melhor regressar a Benguela sem nada, do que deixar ali a vida. No meio de toda aquela azáfama, lobrigou Hamutenya, já com alguns panos ao ombro e vários colares de missangas ao pescoço e enroladas nos pulsos. Alguém trouxe o que poderia ser considerado uma cadeira, mais um banco, e viu um homem sentar-se nele, certamente o chefe, o Soma. Aos poucos a ordem foi-se restabelecendo e viu Hamutenya ser chamado junto do homem sentado e receber instruções.
"Sô Tônio, pode vir", gritou várias vezes, em direcções diferentes.
Esperou por uma resposta, que não veio e repetiu o chamamento. António Labrego ficou sem saber o que fazer, onde estava não lhe oferecia garantia alguma, bastava seguirem a pista a partir da sua tenda, as marcas das botas prontamente seriam reconhecidas e talvez viesse a sofrer consequências mais gravosas. Mesmo assim, necessitando de tempo para pensar, não respondeu.
Viu o chefe sorrir e a beber alguma da aguardente roubada. Isso deu-lhe a determinação de se apresentar, preferia falar com ele sóbrio de que já embriagado. Notou que tresandava a fezes, não se limpara e sem se levantar para não se tornar alvo gritou, em umbundu, como sinal de esperança, desejando que esse povo não fosse odiado por eles.
1)  Hamutenya, ndi-si kulo". (Hamutenta, estou aqui)
Ouviu uma gritaria generalizada de contentamento e observou o chefe a sorrir, sinalando a Hamutenya para o ir buscar. Por fim levantou-se, tentou demonstrar porte digno mas não altivo, compôs a roupa e sentiu que a diarreia se evaporara. Deu uns passos à frente para se revelar e quando notou que fora visto estancou à espera. Hamutenya, trajado como os outros, vestia um pano amarrado à cinta e que se dobrava sobre si mesmo e sobre este, amarrada, uma pele de boi preto, com um outro pano mais pequeno a tapar-lhe as nádegas. Carregava uma longa azagaia, bem como a sua arma e um punhal á cinta. Aproximou-se a António Labrego, sorriu-lhe e indicou que o seguisse. Assim foi levado à autoridade sentada, que se manteve impressionada a olhar.
Aguardou, braços pendentes e tentando não revelar qualquer emoção.
(2) “Ke na sha oshipa... ke na sha oshipa…”, (ele não tem pele) saiu da boca do Ohamba a exclamação atónita.
Recuaram assustados e o cimbanda foi chamado para explicar como é que um homem, caso fosse mesmo homem, não tinha pele.
1) “Ano yee omhepo yashituka ta yeende muunyuni wovanamwenyo?”  (será um espirito a vaguear no mundo dos vivos?) insistiu o Ohamba a olhar para o cimbanda.
Atiraram-lhe um pau para verificar se o atravessava.
Quando satisfeitos que era um ser humano igual, o chefe agarrou em vário colares de missangas, observou a qualidade, bebeu mais um gole da aguardente e falou para Hamutenya, que traduziu.
“Ohamba Shikwete Ndesipakwa dizer branco trazer coisas boas. Branco aqui não chegar, sô Tônio querer quê, Ohamba preguntar?"
António Labrego sorriu e como sabia que bater palmas era sinal de respeito, assim o fez três vezes antes de falar, curvando-se ligeiramente.
"Diz ao grande chefe que vim para fazer comércio, trocar coisas, o que aqui trago por marfim, bois, cera e mel, como bens sabes, saíste de Benguela comigo. Se for do agrado dele, poderemos continuar estas trocas, uma mão lava a outra. Nada mais aqui me trás, como bem sabes, repito."
Hamutenya traduziu tudo, esperando António Manuel Labrego que ele fosse fiel no verter de suas palavras. Ouviu novamente o chefe a falar para Hamutenya, que se virou para ele.
"Ohamba Shakwete falar sô Tônio tratar bem gente dos carregador, eu contar, maji branco nunca vir aqui, primeira vez. Chefe dizer sô Tônio vir com chefe e viver no 2) ehumbu. Regressar no Benguela não pode, branco não pode voltar aqui."
"Diz no chefe que aceito e vou ficar a viver aqui.", achando ser essa a resposta mais prudente por agora.
Quando as suas palavras foram traduzidas, novamente se ouviram gritos de contentamento por parte de muitos.
Ficou sem saber o que fazer de seguida, certamente manter-se como estava e aguardar. Veio-lhe então à mente, talvez como compensação, que o seu Natal iria ser passado sozinho entre gente que disso nada sabia, se de facto o mantivessem vivo. Pediu que tudo o que tivesse na sua tenda, seus pertences, pudesse ser levado com ele ao que o chefe anuiu mandando-lhe executar a tarefa com Hamutenya e indicando um outro que se encarregaria de a colocar nos burros. Pensou na mula e decidiu de imediato que a iria oferecer ao chefe. Para ele pouco lhe serviria a partir de agora.

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

CONTOS DE SAMUEL ASTRO

 A SAIR BREVEMENTE


 

O PERUANO

 Vi-o pela primeira vez mais como uma sombra que se pronunciava mar adentro. De pé, no pontão de pesadas lajes colocadas para desafiar o mar quebrando-lhe a força entre as praias naquela língua de areia que já fora a residência dos dignatários enviados pelos reis do antigo Kongo para a recolha do nzimbu, a moeda oficial do reino. Estas mesmas areias sujeitaram durante sete anos, por ordem do grande Ngola, o capitão Paulo Dias de Novais, o branco vindo do mar em barcos jamais vistos.

De pé, ali o vislumbrava olhando a sinfonia deslumbrante orquestrada  pelos raios do sol poente, quando por momentos os dois se fundiram em um e ambos submergiram nas pacíficas águas do quente Atlântico.

No dia seguinte, à mesma hora e local, tornei a vê-lo. Talvez preparando-se para se alçar como estrela da noite ou ser engolido pelo reino de Mutakalombo, o dono dos mares e suas profundezas.

Apressadamente dirigi-me para onde ele estava que, pressentindo-me, virou a cabeça e viu-me. Voltou-se novamente para o poente e assim permaneceu enquanto eu subia as enormes pedras do pontão Pareceu-me que rezava ou cantava uma ladainha.

Que viva mi papá,
Que viva mi mamá,
Que viva Ramón Castilla
Que nos dio la libertad

Parei para não o ofender por me considerar intruso no seu espaço e momento íntimos. Sorriu e acenou para que subisse.

"Sou o Samuel Astro", apresentei-me uma vez a seu lado.

"Júlio Florez", respondeu e voltou-se novamente para o mar.

Que viva mi papá,
Que viva mi mamá,
Que viva Ramón Castilla
Que nos dio la libertad

Aguardei, silencioso, tentando entender a canção, certamente palavras de gratidão a alguém, pelo que percebi , louvando seu pai e sua mãe.

 De novo ergueu  as mãos para a nesga do sol que ainda nos consolava e que em segundos desapareceria, tragado sem piedade pela noite , a nova dona do Mundo ali e então.

Que viva mi papá,

Que viva mi mamá,

Que viva Ramón Castilla

Que nos dio la libertad

Assim que o astro rei mergulhou no abismo profundo, virou-se e convidou-me a descer.

"Falava em espanhol", afirmei, curioso.

"Sim, sou peruano filho de África, trisneto de escravos vindos do Kongo."

"Falava de um Ramón Castilla, quem é, ou foi?"

"Foi um grande homem do Peru, aquele que nos concedeu a liberdade, nos libertou da escravatura." - disse, caminhando.

Talvez não desejasse falar comigo naquela hora que poderia considerar sagrada ou relevante para si.

Não estando familiarizado com a História do seu país e não sabia o que dizer, para alem de, estranhamente, me sentir culpado como se tivesse sido quem exportara seu trisavô para a América Latina.

"Foi um Governador, um Presidente? Desculpe a minha ignorância."

"Presidente.", respondeu sem se voltar e continuando a andar.

Decidi abandoná-lo, evaporar-me  sem que ele se apercebesse, e com a escuridão que descera sobre nós, nem mais o via. Ainda hoje não sei se efectivamente Júlio Florez alguma vez esteve naquele pontão a saudar o oceano que banhava o seu continente e a agradecer a um bom homem que se revelara humano, nesse continente aonde o bisavô enterrara seu umbigo africano.


quinta-feira, 16 de julho de 2020

VERTENTES DA FICÇÃO INSÓLITA ANGOLANA

VERTENTES DA FICÇÃO INSÓLITA ANGOLANA



Jurema Oliveira - Professora da Universidade Federal do Espírito Santo na área de Teoria Literária e Literaturas de Língua Portuguesa, Pós-Doutora em Letras pela Universidade Federal Fluminense Uff, desenvolve pesquisa na área de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa

Resumo: Depreender na literatura angolana as vertentes da ficção insólita contemporânea.

Palavras-chave: tradição, oralidade e insólito

O corpo é ao mesmo tempo o ponto de partida, o ponto de origem e o referente do discurso. O corpo dá a medida e as dimensões do mundo (ZUMTHOR, 2000, p.90).
O presente trabalho tem por objetivo discutir as vertentes da ficção insólita angolana. Para esse estudo escolhemos as obras dos autores (…) e Fragata de Morais.

           … Fragata de Morais escreveu Como Iam as Velhas Saber (1983A Seiva (1995)Jindunguices (1999), Momento de Ilusão (2000), Amor de PerdiçãoAntologia Panorâmica de Textos Dramáticos (2003)A Sonhar se Fez Verdade (2003), A Prece dos Mal Amados (2005)O Fantástico na Prosa Angolana (2010) e Batuque Mukongo (2011).
O século XX presenciou modificações históricas importantes no cenário mundial e em particular nos países africanos de língua portuguesa. O fenômeno violência nasce do desejo de dominação de um homem sobre todos os homens, mas, de acordo com Hannah Arendt, a violência destrói o poder, não o cria. Em contrapartida, as ações violentas fazem emergir no cenário social experiências insólitas, não habituais do ponto de vista cultural. A violência neutraliza toda e qualquer possibilidade de os homens se organizarem e viverem em harmonia e consequentemente abre espaço para o luto visível nas imagens refletidas num espelho d’água embaçado. Estes fatos constituem o móvel, os eventos sustentadores do gênero insólito:
           [...] o mundo organizado de repente se desorganiza, sobrevém então o desequilíbrio e as personagens oprimidas passam a viver o clima do absurdo, isso então seriam as características de um ‘insólito contemporâneo’ que lida com o coletivo e a vida pública, problematizando-os (Rodrigues, 2007, p.92).
Nessa perspectiva, os eventos não ocasionais, violentos, são postos em movimento por uma língua ficcionalizada que desloca as falas de seu lugar habitual, dando nova roupagem à ideia de apagamento, de censura promovida pelo discurso oficial, e abrem espaço à circulação da heterogeneidade identitária e discursiva, numa demanda múltipla dos eventos insólitos que rondam as experiências humanas diárias dos “pontos-sujeitos”.
Para Carpentier, o maravilhoso constitui-se na modificação da realidade. Assim, a sensação do maravilhoso pressupõe uma fé, uma crença. Os que não acreditam em santos não podem curar-se com milagres de santos:
          [...] o maravilhoso começa a sê-lo de maneira inequívoca quando surge de uma alteração da realidade (o milagre), de uma revelação privilegiada da realidade, de uma iluminação inabitual ou especialmente favorecedora das inadvertidas riquezas, de uma ampliação das escalas e categorias da realidade, percebidas com particular intensidade em virtude de uma exaltação do espírito que o conduz a um modo de ‘estado limite’ (CARPENTIER, 2009, p. 9).
A experiência inabitual de que fala Carpentier presentifica-se no mistério que envolve a árvore, mobilizando, assim, toda a comunidade. No plano maravilhoso, é comum encontrarmos expressões ou termos que remetem os fatos ocorridos ao mundo sobrenatural, sem uma explicação racional. De acordo com Todorov: “O fantástico se define como uma percepção particular de acontecimentos estranhos” (TODOROV, 2004, p. 100)…
… O maravilhoso modifica o cenário, gera um estranhamento e estabelece novas categorias para a realidade. Sendo assim, o conto “O filho” do livro Momentos de Ilusão, de Fragata de Morais, nos apresenta uma experiência inusitada que é uma gravidez de sete anos: “Há sete anos que o filho lhe remexia as entranhas. Não havia dúvida, há sete anos que a criança a apalpava por dentro, que lhe falava em silêncio penoso”. A narrativa de “O filho” se desenrola valorizando o sobrenatural e o erotismo, pois o esposo ao cumprir o ritual afetivo conduz o desfecho do conto:
          … Na sala, o marido notou a esposa a arfar em agonia no sono, sentiu-a febril ao tomar-lhe a mão. Tacteando, beijou-a com culpa insaciável, nem se lavara ao sair da amante. Esta, grata pela carícia, levou-lhe a mão ao ventre e puxou-o a si, ardendo não de febre, mas de desejo. Penetrou com a língua sedosa o bacio da orelha do esposo e vasculhou-lhe os putrefactos segredos da alma.
A vontade renascida entumeceu-lhe as calças, tentou ignorar.
“Que situação ridícula, não posso”.
Todavia os lábios femininos insuflaram a não mais o estertor do delírio. E quando a penetrou desvairado, sentiu a criança agarrar-lhe a força máscula, o pénis, e a levá-lo para o ventre materno no momento supremo do prazer, da agonia, no explodir tumultuoso do plasma. (...)
Foi, na sala de visitas espaçosa, ao lado do sofá de couro onde repousava o corpo inerte e putrefacto da companheira, que os vizinhos o encontraram sete dias mais tarde.
Do carcomido ventre da esposa saiu um sardão vermelho que desapareceu por trás do cadeirão tronco de árvore, restolhando as folhas secas das tristezas (Morais, 2000, p. 13).
          Numa perspectiva numerológica, o sete é o número místico por excelência em todas as religiões e seitas, desde as mais primitivas as mais modernas. O sete é o número da criação. É também o número que indica a relação viva entre o divino e o humano, entre o bem e o mal.

No conto “A Seiva”, da mesma obra, Fragata de Morais metaforiza a fertilização da terra, símbolo maior, e a fertilização da mulher. Os personagens centrais nutrem um amor com “raízes na inocência rural e na crueldade terrível da natureza” (Morais, 2000, p.30), pois “o relâmpago quando desvirgina o firmamento, seu grito de prazer troveja pelos ares, derrubando árvores, casas e mesmo gente. Nada se lhe opõe no caminho da fertilização da terra. Assim seria com ele”(Morais, 2000, p.30).  Essa força sobrenatural oriunda do amor era ponderada constantemente por Mbuta que:
          … Lembrava as longas conversas com Jorge sobre o que seria tradição, usos e costumes antigos, face à Bíblia, à palavra simples, mas pesada dos padres.
          Convencera-se por fim que, feitas bem as contas, seria trocar um feitiço por outro. Abandonar a crença dos antepassados para abraçar a crença do feiticeiro dos brancos que curava leprosos com um simples toque de mãos, punha paralíticos a caminhar com uma mera vontade e palavra e, coisa jamais vista na tradição dos negros, ressuscitava mortos. Pesadas bem as coisas, de facto não havia motivos para reter a crendice clânica. O que se perdesse por um lado, a Bíblia reporia por outro, era como estava escrito olho por olho, dente por dente (Morais, 2000, p.32).
         
O questionamento feito por Mbuta acerca das tradições negras e brancas nos permite ler uma similaridade nas experiências vivenciadas por ambos os grupos humanos em torno daquilo que se origina de uma revelação não habitual, mágica decorrente da fé. Um exemplo fortalecedor do maravilhoso no conto “A seiva” diz respeito ao relato de Jorge acerca do batismo de seu bisavô materno:
          … Jorge contou que seu bisavô materno, de nome Kiavulo, fora baptizado com o nome João Patrício pelo padre, por o original ser gentio. Segundo o argumento do agente de Deus na terra, agora que virara cristão, seu nome teria que ser em consonância, nada desses nomes esquisitos que ninguém sabia o que queriam dizer. Kiavulo, que desejava aprender as coisas dos brancos, enfiou-se na catequese. Algum tempo depois, entre outras informações complexas, ficou a saber que lhe era vedado comer carne às sextas-feiras. Ora um dia desses, João Patrício, como então exigia ser chamado pelos outros naturais, caçou uma lebre e preparava-se para a comer, quando a nova consciência o admoestou, por ser o fatídico dia. Mas como a fome não tem nada de cristã nem aprendeu a ler a Bíblia, João Patrício agarrou no bicho já esfolado e antes de o comer meteu-o na água do rio, fazendo o sinal da cruz sobre o mesmo.
          ‘Se Kiavulo ser agora João Patrício, tu kabulo ser agora peixe. Branco pode fazer, mim também’, sentenciou para paz de sua consciência (Morais, 2000, p.32).

          Num ritual que envolve preceitos e quebra de preceitos percebe-se que o imaginário das personagens está imbuído de sensações experimentadas cotidianamente, pois o real maravilhoso se mostra de um lado na religiosidade africana e, por outro lado, no catolicismo, bem como nas práticas culturas africanas diárias. No desfecho do conto depreendemos uma sucessão de fatos extraordinários:
          … Jorge Torres, atordoado pela voluptuosidade inesperada da namorada, logo se recompôs. Apertou-a com paixão e preparou-se para o amor. Com frenesi conseguiu desnudar-se.
          Quanto a Mbuta, já há algum tempo que partira da casa da lenha. Só o corpo restara, cada vez mais abraçado a Jorge.
          Sua essência descia enroscada pelo poste na clareira, ao ritmo do bater abafado das mãos e dos pés das mulheres em seus cânticos de fertilidade.
          Silenciosa, feita serpente maior do que a jiboia, foi apertando os elos pelo corpo do amado que, de olhos cerrados e arfando, gozava o amor e a entrega, sem notar que a asfixia que sentia não se devia ao êxtase do prazer fulgarante e ritmado, mas sim ao aperto premente da cobra em si enroscada.
          Quando sentiu o ar faltar-lhe por completo, no momento excruciante do orgasmo, já roxo, seus olhos esbugalhados viram a enorme cabeça da jiboia a olhá-lo, língua bifurcada silvante.
          Despedindo-se no último beijo de amor, sua cabeça tombou por fim para o lado, o corpo inanimado amassado.
          A serpente desenroscou-se e rastejou silenciosa para o mato, desaparecendo. Ao longe, os contratados tocavam seus batuques dolentes que falavam das saudades da terra e dos familiares (Morais, 2000, p.34).

          Nos contos de Fragata de Morais, o real maravilhoso flui livremente, pois apresenta no primeiro momento situações totalmente normais para só no futuro proporcionar ao leitor um cenário sobrenatural.
O estilo maravilhoso de que fala Carpentier no livro O reino deste mundo (CARPENTIER, 2009, p. 10) não é privilégio das Américas, mas uma herança de uma África que imprimiu suas marcas e traços históricos numa diáspora que se descobre herdeira de uma cosmogonia ainda em construção. As ações ditas insólitas, inabituais tem um arcabouço fundado por um enredo cosmogônico que se desenvolve por meio de uma elaborada estrutura simbólica como aquela percebida nas longas festas do Komba, ritual de passagem de um ente querido em Angola.
A performance experimentada pelos personagens do conto…. …bem como do ritual amoroso do conto ‘O filho”, de Fragata de Morais mostra o corpo em performance, conceito pensando por Paul Zumthor na obra Performance, recepção, leitura (2000). De acordo com o mesmo autor performance se refere de modo imediato a um acontecimento oral e gestual.

O conto “Desencontros” de Fragata de Morais, retrata a história do espírito de um soldado chamado Hernando de La Cuenca y Fraga. Numa perspectiva que remete a um contexto simbólico-religioso, Evaristo, o esposo, presencia a possessão da mulher Filipina:
… Uma noite, em que Evaristo teve o susto da sua vida, ao entrar no quarto deu com Filipina sentada na cama em profundo transe, olhos esbugalhados e em cheliques. Pensando presenciar um ataque de epilepsia, agarrou-a pelos ombros com o fito de a deitar, sendo violentamente sacudido por um abanão que o enviou de encontro à porta do quarto. Estatelado no chão, boca aberta de espanto, ouviu uma voz masculina rouca e profunda a sair pelos lábios da esposa (Morais, 2000, p.38).

Hernando de La Cuenca y Fraga retorna para cobrar um reconhecimento que não teve em vida e usa o corpo de Filipina para obter reconhecimento pelos seus feitos:
Evaristo esfregou os olhos, Filipina olhando-o fixamente e altiva. Parecia-lhe uma blasfêmia ouvir, não as palavras preferidas, mas a voz masculina e roufenha gorgolejando pela boca da esposa.
“E o que tenho eu a ver com isso?”, ouviu-se perguntar.
“A tua mulher terá que divulgar esta minha miséria. É injusto, ninguém se lembra de mim. Andei com o general Pereira de Eça a combater para o engrandecimento da pátria...”
“Minha mulher?!...”, disse, de olhos, agora mais esbugalhados.
“Sim, tua mulher!”
“Meus Deus, que pesadelo!...”, balbuciou Evaristo, esvaído de forças e vontade.
“Pesadelo é o meu. Mandume passeia-se por aqui de cavalo branco, servido por vários Lengas e a cada instante ouve seu nome ser recordado. Quanto a mim, nem a minha família sabe que existi!...”, disse Hernando (Morais, 2000, p. 39).

Os acontecimentos insólitos são aqueles que não ocorrem com frequência, contrários às práticas sociais diárias, logo, causam espanto, estranheza, pois destoam dos hábitos comuns dos indivíduos em suas experiências quotidianas, resultantes historicamente de um sistema de concepções herdadas, correspondentes às formas como os homens se relacionam e transmitem seu conhecimento entre uns aos outros em uma determinada cultura e em um determinado momento das distintas realidades sociais. Diante disso, “é lícito opor o insólito ao natural, e ao ordinário, termos comuns na teoria dos gêneros literários quando se quer falar de Maravilhoso, Fantástico, Estranho, Sobrenatural, Realismo Maravilhoso, Absurdo” (GARCIA, 2007, p.19). Seguindo as explicações do dicionário, podemos ampliar nossas informações acerca daquilo dito natural. Segundo ainda o dicionário, o termo “natural”, significa aquilo que segue a ordem natural das coisas, lógico, próprio do instinto, instintivo, espontâneo, enfim, o que é previsível, provável (FERREIRA, 1986, p. 1608).
O projeto literário angolano contemporâneo conta com várias correntes, uma decorrência das mudanças sociais e políticas. De acordo com Vasconcelos (2009), o período pós-independência é marcado literariamente pelos diversos e múltiplos processos de ruptura conceptual de arte com o tipo de regime e sua falência num universo de múltiplos e de intermináveis experimentalismos. Esse experimentalismo conduziu a trajetória artística dos diversos escritores angolanos. Assim, transitando entre experiências tradicionais e fatos extraordinários Boaventura Cardoso e Fragata de Morais produziram obras representativas das vertentes insólitas da literatura angolana.
Bibliografia:
CARPENTIER, Alejo. O reino deste mundo. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
            CHAVES, Rita, MACÊDO, Tania & MATA, Inocência.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
GARCIA, Flavio (Org.). A banalização do insólito: questões de gênero literário – mecanismos de construção narrativa. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2007.
MORAIS, Fragata de. Batuque mukongo. Luanda: União dos Escritores Angolanos, 2011.
O fantástico na prosa angolana. Luanda: Mayamba, 2010.
A sonhar se fez verdade. Luanda: Inic, 2003.
 A prece dos mal amados. Porto: Campos das letras, 2005.
Momento de ilusão. Luanda: Chá de Caxinde, 2000.
Jindunguices. Luanda: Inald, 1999.
Como iam as velhas saber. Luanda: Inald, s.d..
A seiva. Luanda: Inald, s.d..
Amor de perdição. Luanda: Chá de Caxinde, s.d..
18 – RODRIGUES, Tailane. In: GARCIA, Flavio (Org.) A banalização do insólito: questões de gênero literário – mecanismos de construção narrativa. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2007.
19 – TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2004.
20 – ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. São Paulo: EDUC, 2000.